Adotar uma criança não é como escolher uma boneca – ou boneco – na loja de brinquedos. Embora seja permitido aos adultos elencar preferências e até características desejadas quando dão entrada no pedido de adoção, "devolver" um filho aumenta ainda mais o estigma de ser rejeitado, carregado pela maioria dos meninos e meninas que crescem nos abrigos, enquanto veem os mais novos serem levados para um "lar de verdade".
Antes de completar 8 anos, Enzo foi acometido duas vezes pela sensação de ser um boneco na prateleira. Foi levado por pessoas que se apresentaram como pais e, depois, foi devolvido.
Da última vez que isso aconteceu, acabou separado da irmã – que preencheu o papel de filha do casal que não conseguiu o mesmo com Enzo. Dos sete irmãos biológicos, cada um foi adotado por uma família diferente, apenas ele havia "sobrado".
Mas há cerca de um ano, essa história começou a mudar. "Enzo nos escolheu", afirmam os pais Kairon Oliveira da Silva e Silvio Romero Fagundes, que moram em Brasília.
“Até então, o plano era adotar uma criança de até dois anos, mas quando me apresentaram o Enzo foi amor à primeira vista”, disse Kairon ao G1. “Liguei pro Silvio e falei: a gente já tem um filho.”
“É uma coisa inexplicável. Eu não sei que amor foi esse, mas filho a gente não escolhe, né?”
O único empecilho para que os três se tornassem uma família, naquele momento, era geográfico. O menino vivia em um abrigo de Águas Lindas de Goiás, no Entorno do DF, e o casal mora em Brasília. “Nós começamos o processo por aqui com o plano de migrar para a fila de Goiás e conseguir o Enzo.”
Há um ano, no dia 5 de dezembro de 2017, Kairon e Silvio fizeram juntos a primeira visita a Enzo. Eles conseguiram transferir o pedido de adoção para Goiás e começaram os trabalhos de aproximação com o menino, em parceria com a equipe da casa de acolhimento.
“A gente pensou que ia ser difícil para ele lidar com dois pais, mas foi a parte mais fácil. Ele achou legal, porque colocava a dificuldade na mãe. Para ele, era a mãe que sempre o abandonava", explica Kairon.
“O Enzo chamou a gente de pai logo na primeira semana.”
Com os pais, Enzo descobriu um prazer que ainda não tinha conhecido: viajar. “Sempre que temos uma folga fazemos questão de viajar", disse Kairon.
"Já fomos para o Recife, conhecer a família do Silvio, e para Goiânia. Agora, vamos de novo ao Recife, depois passamos em Fortaleza e terminamos em Belém do Pará, onde mora a minha família, para o Enzo conhecer o avô.”
O processo de adoção foi concluído no dia 12 de novembro pelo juiz Felipe Jales Soares, da 1ª Vara de Família, Sucessões, Infância e Juventude do fórum de Águas Lindas de Goiás. Agora o menino é legalmente filho de Kairon e Silvio.
Déficit de atenção
Ainda no abrigo, Enzo foi diagnosticado com déficit de atenção. A hiperatividade e a dificuldade de concentração, porém, não foram interpretadas corretamente, dizem os pais.
O tempo de espera por uma família e as sucessivas rejeições condicionaram o comportamento do pequeno garoto, garantem eles.
“Imagine a insegurança de um menino que foi rejeitado três vezes?”
Kairon fala do abandono pela mãe biológica e pelas duas outras famílias que chegaram a levar a criança para casa e devolveram. “Naturalmente, ele era irritado, não gostava de tomar banho, não dormia sozinho com a luz apagada, gritava dizendo que não queria voltar pro abrigo, quebrava a escola toda”, relembra.
Em Brasília, na primeira experiência escolar, os pais recebiam ligações quase diárias do colégio. “Eles queriam medir força com o Enzo. Tiravam de sala, excluíam do convívio com os alunos, não era demandado como os outros.”
Segundo Kairon, a psicopedagoga da instituição chegou a entregar um laudo com a informação de que Enzo tinha transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDH) e distúrbio de comportamento.
“Ela nos chamou e disse que deveríamos desistir enquanto ainda estava em tempo, porque ele seria um filho problemático.”
Kairon e o marido não aceitaram o diagnóstico e submeteram o menino a outros exames. Desta vez, os laudos não apontaram qualquer alteração. O déficit de Enzo não era de atenção, mas de carinho, amor, segurança e cuidados.
“Buscamos a melhor neurologista de Brasília e ela disse que Enzo não tinha qualquer doença. A única coisa que sugeriu foi que mudasse meu filho de escola.”
Há cinco meses em um novo colégio, Enzo deixou de ser motivo para telefonemas. “A gente nunca recebeu uma ligação. Ele ama as professoras e se desenvolveu muito rápido, porque é uma escola que o abraçou, que o incluiu.”