O carnaval é um momento irônico, de subversão de valores. Temos visto, nos últimos anos, corpos gordos caindo na folia sem censura, mas não sem receberem críticas e serem alvo de preconceito.
A questão veio à tona mais uma vez, este ano, no qual as polêmicas pochetes viraram acessório carnavalesco. O adereço virou ofensa para muita gente ao ser confeccionado com uma imagem de uma barriga gorda, trazendo à tona a discussão sobre a gordofobia na nossa sociedade.
Além do preconceito, uma pessoa gorda enfrenta uma série de exclusões sociais vexatórias, que vão desde a dificuldade em encontrar um assento em transportes públicos ou uma roupa.
Em defesa da diversidade corporal, ativistas vêm chamando a atenção para esse tipo de preconceito discutindo-o e, também, mostrando os seus próprios corpos.
Um desses ativistas é a jornalista e youtuber Alexandra Gurgel, que desde criança enfrenta o preconceito por ser gorda e a pressão por ter um corpo que não se encaixa em um padrão de beleza. Ela contou à Carta Capital que fez a sua primeira dieta quando tinha apenas 9 anos. A partir de então, passou a odiar o seu corpo e a percebê-lo como um problema.
O resultado dessa violência social foi que ela desenvolveu bulimia e anorexia, além de ter se submetido a uma lipoaspiração. Mas o pior aconteceu em 2012, quando ela tentou o suicídio, tamanha a sua insatisfação por nunca conseguir atingir o tal padrão de beleza corporal. Ao chegar a esse limite, Alexandra conta que:
“Essa situação me fez pensar que tinha algum motivo para eu estar aqui. E viva. Foi isso que me levou ao ‘corpo livre’”.
No ano seguinte, ainda em recuperação, a jornalista criou um canal no Youtube para discutir a gordofobia e o movimento “corpo livre”, que hoje conta com cerca de 600 mil seguidores.
Essa discussão nasceu no país com as maiores taxas de obesidade mundialmente, os Estados Unidos, onde o conceito “body positive” começou a ser usado para desconstruir a imposição de um padrão ancorado em um corpo “perfeito”, a fim de que as pessoas passassem a se amar da forma como elas se apresentam ao mundo.
“Um corpo livre é um corpo que entende o contexto social em que estamos inseridos, que não é culpa nossa. Que começa a se amar, a viver, dançar, andar, caber nos lugares e etc.”, explica Alessandra.
Diferentemente da gordofobia, que é uma questão sobre a dificuldade de acessos a um corpo gordo, a pressão estética é a imposição de um padrão de beleza tido como “ideal”. Em geral, esse tipo de pressão social é muito mais forte sobre as mulheres, que passam a sua vida tentando ser magras.
O tipo de ativismo feito por Alexandra tem ganhado cada vez mais popularidade nas redes sociais, nas quais ambos os temas, gordofobia e pressão estética, vêm incentivando as pessoas ao debate, que inclui, ainda, a associação do corpo gordo a um problema patológico.
Isso significa que corpos gordos são julgados como doentes, não apenas pelo crivo social como, também, médico. Nas redes sociais, há vários relatos de pessoas gordas que sofrem preconceito, mascarado de cuidado, por parte de profissionais de saúde.
A psicóloga Vanessa Tomasini, especialista em comportamento alimentar, relata que o perfil de seus pacientes são mulheres insatisfeitas com o corpo delas. Foi por isso que ela decidiu criar o projeto “Você Tem Fome de Quê?”. Com o objetivo de levar a assistência dada em seu consultório para mais pessoas, ela criou um canal no Youtube no qual compartilha sua experiência profissional.
“As mulheres têm uma baixa autoestima por causa do corpo. Elas acreditam que seus valores estão única e exclusivamente no corpo. Atendo mulheres que são bem-sucedidas na carreira, mas não se amam apenas por causa do físico”, comenta a psicóloga.
Vanessa alerta sobre a diversidade dos corpos e a inviabilidade, pois, de buscar e manter-se em um padrão. Ela dá como exemplo a modelo Gisele Bündchen, símbolo mundial de beleza, que tem uma irmã gêmea diferente dela. A beleza é uma construção social que pode ser desfeita, se não nos deixarmos cair na armadilha do estereótipo.
Quando passamos a entender que nenhum corpo é igual a outro, porque não existem pessoas iguais, damos espaço à percepção de que a beleza é muito mais ampla e diversa – e nosso olhar passa a agradecer por poder enxergar muito mais a beleza existente na diversidade da realidade.
Autocuidado
Claro que ninguém está fazendo uma ode à obesidade e à displicência, mas a prática do autocuidado é muito mais abrangente do que fazer dieta e ir para a academia.
O endocrinologista da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Carlos Eduardo Seraphim, destaca que a obesidade é definida pelo IMC acima de 30 kg/m2 (IMC= peso/altura2), mas que existem outros fatores a serem levados em conta.
“IMC não é o único fator. Temos que levar outros critérios em conta, como a circunferência abdominal, a relação cintura/altura, a quantidade de gordura visceral, etc”, explica.
Seraphim destaca, ainda, que estudos têm mostrado que fatores genéticos interferem na obesidade, e não apenas a alimentação.
O especialista fala da importância de tratar a obesidade sem preconceitos:
“Se me perguntar qual é a saída, acredito que devemos tratar as questões de saúde na obesidade com respeito e sem discriminação. Não é papel do médico estabelecer um ideal de beleza ou de peso ao paciente, embora eu saiba que infelizmente ocorre. Ainda mais, há todo um segmento de ‘mercado’ e charlatanismo que se aproveitam da fragilidade emocional de algumas pessoas para vender curas milagrosas. Gosto da expressão ‘o seu melhor peso’, quer dizer, tentar chegar em um peso mais seguro para a saúde do indivíduo, em que ele se sinta mais disposto, menos cansado, com melhor sono, etc. Para isso temos recursos com dieta/nutricionistas, atividade física/profissionais de educação física e medicamentos/endocrinologistas”.
O peso que não pesa
O “melhor peso” é aquele que não pesa, é aquele no qual uma pessoa se sente confortável sendo quem é, e isso só acontece quando nos aceitamos pelo que somos, seja em relação ao nosso corpo, seja em relação àquilo em que acreditamos e que nos faz bem.